Práticas para produzir leite de qualidade

Letícia Caldas Mendonça
Ms. Ciência Animal, Analista da Embrapa Gado de Leite
leticia@cnpgl.embrapa.br


Introdução

Os programas eficazes para a produção de leite de qualidade, em sua maioria, são conjuntos de práticas de simples adoção, viáveis para pequenos, médios ou grandes produtores de leite e que utilizam os parâmetros de contagem de células somáticas (CCS) e contagem bacteriana total (CBT) como referência para medir os resultados alcançados. São práticas de higiene e de utilização de terapias antimicrobianas, que se tornaram peças-chave para a produção de leite de qualidade.

Tais práticas, em conjunto, consolidaram um dos programas mais amplamente utilizados no mundo, chamado de Plano Compreensivo de Controle de Mastite e Qualidade do Leite ou Programa dos Seis Pontos, que será abordado neste artigo como um exemplo de práticas que podem ser adotadas para melhoria do manejo de ordenha e redução da CCS e CBT. A adoção deste programa permitiu o alcance de bons resultados, como aumento na produção de leite, redução no nível de infecções nos rebanhos e redução da CCS do tanque de refrigeração (Brown et al., 1998 , Schukken et al., 1992).

Para conhecer e saber aplicar estas práticas para melhoria da qualidade do leite é necessário primeiramente conhecer sobre a CCS e a CBT e os fatores que incidem sobre o seu aumento ou redução, já que estes são os principais parâmetros de referência para a qualidade do leite.


A mastite e a CCS

A mastite é uma inflamação da glândula mamária, geralmente, causada por bactérias. Ela pode ser classificada de acordo com a manifestação dos sintomas da doença: forma clínica, na qual os sinais clínicos são evidentes (grumos no leite, edema do úbere, febre, apatia, desidratação); ou forma subclínica, que não apresenta nenhum sinal evidente.

Para detecção da mastite clínica, utiliza-se o teste da caneca telada, realizado em todas as ordenhas. Para detecção da mastite subclínica, o parâmetro indicador mais utilizado são as células somáticas. Se a saúde da glândula mamária é alterada por uma infecção microbiana, o número de células somáticas sofre uma rápida elevação. Portanto, o aumento da CCS está diretamente ligado à ocorrência de uma infecção (Kehrli e Shuster, 1994).

UContagens acima de 200.000 césl/ml para o leite de vacas têm sido consideradas como indicadores de mastite subclínica. A CCS do leite do tanque de refrigeração também pode estar correlacionada com a prevalência desta doença nos rebanhos, ou seja, quanto maior a CCS do tanque, maior a prevalência da mastite subclínica (Lukas et al., 2005).


A contagem bacteriana total

A contagem bacteriana total (CBT) é um índice que está diretamente associado à higiene da ordenha e ao resfriamento do leite. Quanto mais higiênica for a ordenha e a limpeza dos utensílios e quanto mais rápido for o resfriamento do leite, menor será a contaminação e a taxa de multiplicação das bactérias no leite.

Como é de conhecimento geral, utilizar leite que possui grande quantidade de bactérias na fabricação de produtos lácteos acarreta grandes prejuízos tanto para os laticínios quanto para o consumidor final. Isso porque a presença e a multiplicação dessas bactérias no leite prejudicam enormemente o aspecto nutricional (redução de proteína verdadeira, por exemplo), o sabor, o aroma, a textura e a validade dos produtos lácteos.

As práticas de higiene antes, durante e após a ordenha são fundamentais para evitar que o leite apresente alta CBT. Considera-se três pontos críticos para ocorrência de alta CBT: 1) tetos das vacas, 2) utensílios, equipamentos de ordenha e/ou mãos do ordenhador e 3) tanque de refrigeração, tanto no que diz respeito à limpeza, quanto ao seu adequado funcionamento e velocidade de resfriamento.


As práticas para produção de leite de qualidade

O Programa dos Seis Pontos consiste na aplicação de seis práticas de manejo:


1º Ponto: Higiene do ambiente de permanência das vacas

O local aonde as vacas permanecem entre as ordenhas tem relação direta com a CBT e a CCS do leite. Vacas que descansam entre as ordenhas em local sujo tendem a chegar à sala de ordenha com o úbere sujo. A sujeira encontrada nos tetos e úbere é considerada a principal fonte de bactérias do ambiente para a glândula mamária, podendo causar mastite; e para o leite, podendo causar aumento da CBT (Galton et al., 1982).

Por estas razões, a manutenção de um ambiente limpo é fundamental na produção de leite com qualidade. Quanto menor for o contato do úbere com as sujidades presentes no ambiente, menor será a chance de que estas bactérias colonizem a glândula mamária e o leite. Portanto, a meta, quando se pensa no ambiente das vacas, é tentar fazer com que o menor número possível de bactérias consiga alcançar e colonizar a pele dos tetos e do úbere das vacas.


2º Ponto: Pós-dipping

Mesmo que a ordenha ocorra de forma bastante higiênica, sempre há a possibilidade de transferência de bactérias entre os animais, principalmente S. aureus e S. agalactiae, através das mãos do ordenhador, panos de secagem ou unidades de ordenha. Através destes fômites, a pele dos tetos é contaminada e os microrganismos podem adentrar a glândula mamária e causar infecção.

Dessa maneira, os tetos devem ser imersos por completo em solução desinfetante logo após a ordenha, de modo que toda a sua superfície seja coberta com o produto. Uma imersão correta permite a eliminação destas bactérias da superfície dos tetos, prevenindo a colonização do canal do teto e uma provável infecção intramamária. Assim, esta prática reduz o número de novas infecções por diminuir a exposição do animal às bactérias causadoras de mastite. Estudos demonstram redução de 50% a 95% na incidência de mastite com o uso adequado do pós-dipping (Nickerson, 2001).


3º Ponto: Tratamento imediato dos casos clínicos de mastite

O tratamento da mastite clínica, geralmente, inicia-se assim que diagnosticado o caso, através do teste da caneca telada, que deve ser realizado todos os dias, em todas as ordenhas, em todas as vacas. O tratamento imediato pode aumentar as chances de cura da doença, por se tratar de uma infecção recente.

O mais importante neste ponto é que todo e qualquer tratamento deve ser orientado por um veterinário. Por isso, é fundamental que exista na propriedade um protocolo de tratamento de mastite clínica, descrito pelo técnico. Isto porque o sucesso do tratamento depende de vários fatores, como por exemplo, a bactéria que está causando a infecção, o tempo de infecção, o número de tetos afetados, a severidade da infecção e dos sinais clínicos, o antibiótico utilizado, a via, o número, a frequência e a forma de aplicação do antibiótico e outros medicamentos (Green, 2000). Somente o veterinário tem capacitação para definir qual o melhor protocolo para cada rebanho.

O leite de vacas que estão recebendo tratamento com algum medicamento ou que ainda estão sob período de carência do produto usado no tratamento não pode ser utilizado para consumo humano. Por isso, o produtor deve estar sempre atento ao período de carência indicado na bula de cada medicamento.


4º Ponto: Limpeza e manutenção do equipamento de ordenha

O equipamento de ordenha está em contato diário e direto com o úbere das vacas e com o leite por elas produzido. Portanto, sua limpeza e manutenção devem ser realizadas corretamente e conforme a orientação do fabricante, para que o equipamento de ordenha seja um aliado do produtor e do ordenhador na produção de leite com qualidade. Ao contrário, equipamentos sujos e em condições inadequadas de funcionamento podem elevar a CBT e aumentar o risco de ocorrência de mastite.

Uma adequada higiene dos equipamentos de ordenha consiste no correto monitoramento de alguns pontos importantes, como por exemplo, tempo de circulação das soluções, temperatura da água e concentração e qualidade dos detergentes. A limpeza deve ser promovida logo após a utilização do equipamento, pois a demora pode acarretar em uma maior proliferação de bactérias e maior dificuldade de remoção dos resíduos.

Quando se trata da manutenção do equipamento, a maior preocupação está relacionada à ocorrência de mastite. Um equipamento de ordenha mal regulado ou mal utilizado (como por exemplo: nível de vácuo muito alto, pulsação inadequada, remoção das teteiras sem cessão do vácuo e sobreordenha) pode causar micro lesões no epitélio do teto, que se torna predisposto à colonização bacteriana (Hamman et al., 1994). Episódios de mastite clínica ocorreram com freqüência dez vezes maior em quartos com lesão na extremidade do teto do que em quartos com tetos preservados (Philpot, 1979).

Por isso, é fundamental que o equipamento de ordenha esteja bem regulado e com funcionamento adequado, para que não ocorram lesões de tetos e extremidades de tetos, leite residual e queda de teteiras; todos são eventos que podem ocasionar mastite e aumento da contagem bacteriana do leite.


5º Ponto: Terapia de vaca seca

A terapia de vaca seca tem como objetivo tratar as infecções subclínicas adquiridas durante a lactação e evitar novas infecções durante o período seco; período no qual ocorre uma redução na capacidade de resposta imunológica do animal diante de infecções, devido à proximidade do parto.

A eficácia da terapia da vaca seca, que pode chegar a 90% na taxa de cura de infecções já existentes, se deve principalmente ao longo período de ação do antibiótico, que permanece na glândula mamária de 30 a 50 dias; e também devido a sua atuação em úberes que estão praticamente em repouso, facilitando a ação de eliminar as bactérias (Barret, 2002).


6º Ponto: Segregação e descarte das vacas cronicamente infectadas

A segregação de animais portadores de S. aureus é uma das práticas utilizadas como alternativa para minimizar a contaminação entre vacas nos rebanhos. Insufladores contaminados por S. aureus podem veiculá-lo para até seis a oito vacas ordenhadas posteriormente com aquele equipamento (Edmonson, 2001). Por isso, a segregação destes animais, ordenhando-os por último ou separadamente das vacas sadias, pode auxiliar na redução de novas infecções por este e outros patógenos contagiosos. Contudo, a prática da segregação pode se tornar difícil dependendo do manejo da propriedade e da frequência de exames bacteriológicos ou de CCS, para identificação dos animais cronicamente infectados; o acompanhamento de um veterinário é fundamental na implementação desta prática.

Animais infectados por S. aureus são a mais importante fonte de contaminação para vacas sadias, por isso, a retenção no rebanho desses animais torna-se permanentemente um fator de alto risco na ocorrência de novas infecções. Um programa eficiente de controle de mastite deve obrigatoriamente incluir o descarte desses animais, considerando a baixa eficácia dos tratamentos com antibióticos (Barret, 2002).


Conclusão

O mercado interno e externo está muito mais exigente e observador. Considerando não somente o ganho financeiro adquirido com a produção de leite de alto padrão, a melhoria na qualidade deste produto reflete a maior eficiência da produção nas propriedades rurais e eleva o rendimento dos produtos lácteos na indústria. Conseqüentemente, esta eficiência beneficia o negócio destas empresas e da cadeia de leite como um todo. E por isso, tenderão a permanecer no mercado somente os produtores de leite e as indústrias com produtos de alto padrão de qualidade. Portanto, falar em qualidade do leite implica não somente em técnicas de manejo, mudanças na rotina da ordenha, cuidados com a higiene, treinamento dos ordenhadores. Trata-se de uma mudança de paradigmas, de cultura. As informações para tal mudança estão disponibilizadas em vários veículos de comunicação; basta apenas começar.

 

Referências Bibliográficas

BARRET, D. High somatic cell counts- a persistent problem. 2002. Irish Veterinary Journal, v. 55, n. 4, p. 173- 178.

BROWN, D. F.; ARDAYA, D. V.; RIBERA, H. C.; et al. Mastitis control programme in the developing dairy industry of tropical lowland Bolivia. 1998. Tropical Animal Health and Production, v. 30, p. 3-11.

EDMONSON, P. W. Influence of milking machines on mastitis. 2001. In Practice, v. 23, p. 150-159.

GALTON, D. M.; ADKINSON, R. W.; THOMAS, C. V.; et al. Effects of premilking udder preparation on environmental bacterial contamination of milk. 1982. Journal of Dairy Science. 65:1540.

GREEN, M. Treating bovine mastitis. 2000. Cattle Practice, v. 8, p. 183-184.

HAMMAN, J.; BURVENICH, C.; MAYNTZ, M.; et al. Machine-induced changes in the status of the bovine teat with respect to the new infection risk. 1994. In: Bull, n. 297, p. 13-22, Int. Dairy Fed., Brussels, Belgium.

KEHRLI, M. e SHUSTER, D. E. Factors Affecting Milk Somatic Cells and Their Role in Health of the Bovine Mammary Gland. 1994. Journal of Dairy Science, v. 77, p. 619-627.

LUKAS, J. M.; HAWKINS, D. M.; KINSEL, M. L.; et al. Bulk tank somatic cell counts analyzed by statistical process control tools to identify and monitor subclinical mastitis incidence. 2005. Journal of Dairy Science, v. 88, p. 3944-3952.

NICKERSON, S. C. O papel da terapia no controle da mastite. In: Congresso Brasileiro de Qualidade do Leite e Controle de Mastite, 2, 2002, Ribeirão Preto. Anais... Ribeirão Preto: Instituto Fernando Costa, p. 85-98.

NICKERSON, S. C. Choosing the best teat dip for mastitis control and milk quality. In: NMC- Milk quality conference proceedings, april 2001, pg. 43.

PHILPOT, W.N. Control of mastitis with hygiene and therapy. 1979. Journal of Dairy Science, v. 62, p. 168-176.

SCHUKKEN, Y. H.; LESLIE, K. E.; WEERSINK, A. J.b; et al. Ontario bulk milk somatic cell count reduction program: Impact on somatic cell counts and milk quality. 1992. Journal of Dairy Science, v.75, p. 3352-3358.

WENZ, J. R. et al. Comparison of severity classification of coliform mastitis in dairy cattle based on udder inflammatory changes versus systemic disease signs. In: Proceedings of the 2nd International Symposium on Mastitis and Milk Quality, 2001.

 

Esta é a edição nº 32 do informativo eletrônico, Panorama do Leite, de 28 de julho de 2009, uma publicação mensal de responsabilidade do Centro de Inteligência do Leite CILeite, criado em parceria entre a Embrapa Gado de Leite e a Secretaria de Estado de Agricultura, Pecuária e Abastecimento de Minas Gerais – Seapa. Embrapa Gado de Leite – Chefe-geral: Duarte Vilela, Chefe-adjunto de Pesquisa e Desenvolvimento: Rui da Silva Verneque, Chefe-adjunto de Comunicação e Negócios: Carlos Eugênio Martins e Chefe-adjunto de Administração: Antônio Vander Pereira. Editores: Rosangela Zoccal e Glauco Carvalho. Coordenador de Jornalismo: Rubens Neiva. Redação: equipe técnica do CILeite. Colaboração: Pedro Gomide e Leonardo Gravina. Projeto gráfico: Marcella Avila.

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